25/02/15

O homem cego e o mar



No curto passeio matinal em que levo meu cão à rua e aproveito para espiar o meu amigo mar, deparo-me com uma cena, que à partida, parece a meus olhos ainda meio ensonados, um tanto insólita.
No espaço que eu divido com os restantes afortunados-amantes do mar, que ali se colocam estrategicamente para desfrutar de toda a beleza que o local nos oferece, avisto um homem que também habita na vila, que sei cego. O homem, tal como todos os outros que nos colocamos ali, naquele espaço privilegiado para olhar e respirar o mar, está, também ele, ali, mãos apoiadas no cercado, de cara voltada ao mar, a admirar o mar.
Passada a surpresa, pergunto-me o que faz um homem que não vê, parado em frente ao mar, como se o olhasse, tal e qual tantos outros que ali param, naquele miradouro em cima das rochas, sobre o mar...
Eu, como que em transe hipnótico, presenteada pelo acaso com este raro momento de beleza, não tiro os olhos do homem. Observo-o, admiro-o.

O homem arqueia o corpo, elevando levemente a cabeça ao céu, a inspirar aquele ar gelado da manhã levemente salgado pelo mar. Esboça um sorriso de prazer e torna a inspirar mais uma e outra vez. Cabeça então virada ao mar, os olhos que não vêm sabem-no ali e concentram-se nele.
O homem vê cada onda quando pressente sua aproximação e ouve-lhe a força com que se lança sobre as rochas. 
O homem vê a imensidão do mar quando respira a maresia que dele chega. 
O homem vê o estado do mar quando recebe os respingos que a marulhada lhe faz saltar à cara. 
O homem vê o azul do mar pela intensidade do prazer que o momento lhe proporciona. 
O homem cego não só vê, ele enxerga o mar, porque é com a alma que o olha. 

Então, deixei-me estar quieta, voltada para o mar, fechei meus olhos e descerrei todos os meus restantes sentidos permitindo-lhes perceber todas as sensações que chegavam.
Tenho ciente de que não terei conseguido perceber todas as sensações experimentadas pelo homem, meu vizinho no miradouro, porque não possuo, nem de longe, sua capacidade, adquirida ao longo duma vida de experiência. Mas naquele dia eu aprendi mais um pouco da vida. Naquele dia eu descobri uma outra maneira de ver.


O que é ser cego - ler aqui


Homem cego "vê" através do som - ler aqui


23/02/15

Filmes de terror na vida real

Embora haja quem considere que o cinema não passa de um entretenimento, a verdade é que, desde sempre o cinema tem sido uma arte de intervenção, mesmo que, muitas vezes, isso não esteja claramente implícito.
Penso que é importante registar que temos em cartaz dois filmes, que inclusive mereceram o reconhecimento do Óscar, que retratam o que é a penosa luta contra doenças neurológicas degenerativas, sendo um deles, oficialmente uma obra baseada em caso verídico e o outro, embora não se tratando de história verídica, é o retrato da vida real, pois que as doenças são um repetir de sintomas, desgastes e lutas atrozes travadas em rostos diferentes.

Nestes dois casos em concreto, são doenças que, não causando dor física - que na zona cinzenta do nosso imaginário é o maior sintoma associado a qualquer doença e razão de temor - dilacera de forma impiedosa a essência do ser, enclausurando-lhe a vida dentro do corpo.

Estas obras cinematográficas trazem a uma larga fracção da população a oportunidade de conhecer uma doença - Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) - ainda desconhecida por muitos e conhecer melhor uma outra que, para muitos, não passa dum nome - Alzheimer - o que é fundamental para que se toquem as consciências para os problemas enfrentados pelas pessoas/famílias que padecem deste género de doenças e o quão importante é que haja Legislação apropriada e apoio à Investigação.

Ambas, tanto ELA como Alzheimer são doenças neurológicas degenerativas, assim como também o são a Parkinson e a Esclerose Múltipla, diferindo entre si, na maneira como o sistema nervoso é atingido e na maneira como, consequentemente, invadem e afectam as vidas das pessoas.






19/02/15

A estupidez humana não conhece o limite

Num mundo recheado de guerras, povoado pela fome e pelo desespero de vidas desorganizadas e doutras tantas que nunca conheceram orientação, onde as adversidades são mais que muitas e o desassossego impera, pasma-me confrontar-me ainda com ignóbeis antropóides desprovidos do mais elementar raciocínio e que se refugiam no bando para esbravejar contra os incautos que lhes atravessam o caminho.


Será esta uma maneira que estas criaturas, na sua falta de jeito, descobrem para exorcizar seus demónios e para se vingarem da ausência de objectivos na vida?
Freud com certeza diagnosticaria como uma qualquer carência oriunda da mais tenra infância, ou uma outra privação qualquer, que não me ocorre, mas eu, casual observadora, recuso-me a crer que qualquer seja lá o que for justifique e desculpabilize tanto horror perante os céus.



"Eu não contei esta história nem à minha mulher nem aos meus filhos. O que é que lhes diria? Que o pai foi empurrado no metro por ser negro? Isso era inútil"

Ler mais em: http://www.cmjornal.xl.pt/mundo/detalhe/vitima_de_ataques_racistas_quer_prisao_para_adeptos_do_chelsea.html


http://globoesporte.globo.com/blogs/especial-blog/brasil-mundial-fc/post/com-gritos-de-somos-racistas-fas-do-chelsea-expulsam-negro-do-vagao.html

16/02/15

Que seja agora


Sei que o tempo te fez desesperar,
pois que a espera foi longa,
bem sei.
Mas vem,
que ainda estou aqui...
Meu corpo que te pareceu um dia
arrefecido...
Afinal enganou-se,
enganou-me a mim e também a ti!
A frieza que se fez sentir,
era do frio que chegara do Norte
e que ele sentia
regelar-lhe a alma.
Frio aquele, que não conhecia,
frio de que não ouvira falar,
frio que o assustou,
e afastou-te, a ti.
Mas vem,
vem mesmo assim.
Não temas.
O calor da brasa que reacende
mais forte que nunca,
sai deste corpo
cansado,
mas intrépido.
Vem, que se faz tarde.
Vem, e que seja agora!

11/02/15

Carta de despedida



Já contei trinta anos desde o dia em que te foste, numa partida em que não nos permitiram a despedida.
Pergunto-me ainda hoje, como consentiste em ir sem deixar que eu olhasse teus olhos uma derradeira vez para reter na memória essa luz que enchia de serenidade a minha vida.
Foste e levaste-as contigo: à luz de teus olhos e à serenidade que conheci um dia.

Trinta anos passaram, tanto ficou por dizer… Tanto ficou por amar.
Questiono-me – se já se foi tanto tempo, por que não foi de mim esta dor que ainda me aperta o peito e me amarra a garganta num nó doído, de cada vez que não te sinto a meu lado?
Por que não foi de mim esta amargurada ânsia de bradar e de bater a quem te levou de mim?
E tu? Se prometeste estar sempre a meu lado, porque alçaste tuas asas naquele voo súbito e me deixaste aqui? Eu que não tinha asas, que não sabia voar… Eu que não sabia seguir-te, esperei que regressasses…
Esperei a noite toda, uma noite tão longa e escura, onde as estrelas não brilharam porque estavam de luto, também elas. E nessa noite longa e escura, onde as estrelas não brilhavam, o céu, até ele chorava, condoído de ver meu choro, ora pranto, ora choro calado, eterno lamento…

Só tu não entendeste que devias voltar, porque era a meu lado, o teu lugar.
Não voltas, realmente?
É para sempre a partida?

O que tem a morte de tão fascinante que te seduziu a ponto de me abandonares? Essa vadia enfarruscada que se esconde nas sombras, que cobiça a todos… o que, de tão fascinante te sussurrou ela, ao ouvido naquela noite, que te convencesse a segui-la? Insensato! Tão volúvel foste a seguir essa desconhecida e deixar-me aqui, tão só. Eu que não tinha asas, que não sabia voar, que nem conhecia o caminho…




07/02/15

A efemeridade dos deuses

De há uns anos para cá, tem este pensamento me perturbado a quietude da alma, porque, como é natural que seja, quando se é mais jovem e com a mente esverdeada focada nas descobertas dos atractivos da vida, é justo que não haja tempo de sobra para constatações acerca da efemeridade da vida e da decadência que a passagem do tempo dita.
Mas com o passar dos anos, a vida nos vai confrontando com o envelhecimento e com o declínio físico, que, se não é regra, atinge, no entanto, muitas das pessoas que endeusamos e que tínhamos como pressuposto, serem eternas e aprumadas, mantendo força e altivez intactas. Parece assim impossível, a nossos olhos, chegar um dia a constatar nesses nossos falsos deuses uma debilidade e um arqueamento do corpo directamente proporcional à vontade de contrariar o peso do tempo.
Nos últimos anos tenho sido confrontada, de forma recorrente, com esta degradação física e consequentemente emocional, de pessoas que um dia foram deuses, seres imponentes, donos das suas vidas, senhores da situação e de seus corpos, de seus próprios passos e orientadores dos passos dos seus queridos.
E esse envelhecimento do corpo não se prende apenas à idade, posto que, se há pessoas com idade bem avançada e autónomas, outras há, que cedo, por n circunstâncias, perdem seu vigor.

Perturba-me um pai que cede o comando de seus passos à atenção e cuidado do filho, que por ele, pai, contorna obstáculos, tal como um dia, ele, pai, o encaminhou pelos caminhos mais seguros para que não corresse risco de tropeçar.
Abala-me as estruturas, já de si oscilantes, presenciar um filho a segurar na sua mão a mão insegura do seu pai. A mão do filho a apoiar toda a vida guardada naquele homem que hoje é uma amostra mirrada do gigante que foi um dia.
Emociona-me o filho que segue a estender sua mão a todos os cantos e pisos que podem atraiçoar os pés cambaleantes do pai, adaptando sua casa, adaptando sua vida para que não haja quinas onde o pai se magoe, nem tapetes onde tropece, nem corrimão que falhe quando ele precisar se agarrar, nem banco que falte na pressa de assento para tomar fôlego, agora tão fraco.
Emociona-me o filho, que em seu amor único, transforma o pudor do banho em momento abençoado.

Mas o que me tira o ar e faz marejar os olhos é presenciar o filho que numa derradeira mostra de cumplicidade genuína, observa atentamente o pai que sorve em goles curtos a bica que ele lhe dá a beber, ali, sentados à mesa onde há quarenta anos, o pai ensinou-o a gostar de café.

02/02/15

Rostos que não vês



Na estrada da vida,
Sem que se enxerguem,
Tantos rostos se cruzam
Em desencontrados caminhos,
T
R
A
N
S
V
E
R
S
A
I
S
à memória
E aos afectos.

Esses rostos que se cruzam
Sem se verem
Guardam tantas histórias
De que eles não falam,
Que eles não contam.

Os olhos desses rostos
Que se cruzam
Levam alegrias,
Escondem tristezas,
Sabem de lugares bonitos,
De que talvez,
Os teus saibam também,
Mas nunca vais saber,
Porque no cruza que cruza
Desses caminhos desencontrados
Não olhas seus olhos,
Não vês seus rostos, sequer.